A visão de Rudi Gambatto – Jane Harvey-Berrick

O conto de maio traz uma história de redenção para um mafioso muito temido. Preparem-se para momentos tensos, mas com um final esperançoso.

Criado em um mundo brutal da Máfia Mobster, a alma de Rudi Gambatto está atolada na escuridão. Mas uma estranha traz um lampejo de esperança para sua vida crepuscular. © Jane Harvey-Berrick

Meu pai era um homem sádico e cruel.
Violência o excitava, e eu dizia isso de forma literal. Ele teve uma ereção ao assistir as unhas do pé de um cara serem arrancadas, dedos que foram removidos com tesouras de poda. Eu presenciei cada tom de sadismo e depravação conforme crescia. Foi só quando fiquei mais velho que percebi que meu pai era um psicopata, verdadeiramente sem consciência. Mais tarde cheguei a acreditar que ele nasceu sem alma.
Fui criado para ser como ele. Costumava pensar… não, eu acreditei, que era Accursio Gambatto renascido, o diabo encarnado. Mas não sou. Sei disso agora.
Não sabia hoje às quatro da manhã quando acordei, e não sabia às cinco quando corri pelas ruas em ascensão de Atlantic City, de Tony Boloney até a 11th Avenue. Não sabia às nove da manhã quando ordenei que Mikey Delano entregasse sua casa para mim por estar devendo um empréstimo. Meu pai teria removido suas rótulas com um martelo; fiquei satisfeito por Mikey ter perdido a casa que seu avô construiu, colocando sua família na rua.
O homem me observou com olhos silenciosos, seus pensamentos bem mais altos: ele não é como o pai; ele é mais molenga. E se perguntavam se eu poderia seguir os passos do velho.
Eu já sabia a resposta para aquilo.
De quanto dinheiro um homem precisa? Eu realmente queria passar a vida nesse negócio de merda, convivendo com o lixo, a escória da sociedade? Minha mãe quis mais para mim e morreu com suas esperanças sendo despedaçadas. Nunca tive escolha, não enquanto meu pai esteve vivo.
Mas agora ele estava morto, e eu tinha as chaves do reino.
Sentei no escritório que se tornou meu, em uma cadeira que era mais um trono do que uma peça de mobiliário, e olhei para os iates parados no porto. Fiquei encarando por horas — o sol já tinha se posto e o oceano estava tão escuro quanto meu coração. Como seria apenas flutuar para longe?
Fiz uma careta. E o que eu faria sobre aqueles dois fodidos em Los Angeles? Tamborilei os dedos, inquieto. Eles chamaram a atenção da polícia da cidade para os negócios de família, o que significa que o FBI estaria farejando ao meu redor em breve.
Estiquei as costas, sentindo o torcicolo no pescoço das muitas horas mexendo nos papéis da minha mesa. Talvez eu devesse pedir uma massagista. Susan, ou era Sonia? Qual delas eu ainda não fodi?
Espiei a fotografia dos meus pais no dia do casamento deles. O último dia em que ela foi feliz, eu costumava pensar. Ela estava sorrindo, parecendo uma jovem Priscilla Presley, de braços dados com um monstro cujos olhos escuros brilhavam para fora da imagem: Accursio e sua jovem noiva.
Uma dor de cabeça floresceu por trás dos meus olhos e massageei a têmpora, voltando os pensamentos novamente para o problema em Los Angeles.
Accursio tinha colocado a marca em um dos seus ex-lutadores de gaiolas, um homem que atendia pelo nome de Cobra. Assisti à última luta de Cobra, vi como o homem lutou contra a morte na gaiola, e como ele se afastou, se recusando a lutar de novo.
Ninguém se afastava do meu pai, então havia um preço pela cabeça de Cobra.
Mas Accursio não viveu muito mais também e estava queimando no inferno, ou assim eu esperava.
Dois idiotas, associados ao meu pai, decidiram agir por conta própria e bater em Cobra, esperando que eu ficasse satisfeito o suficiente para nomeá-los como homens feitos, título dado aos homens completamente iniciados na máfia americana. Em vez disso, um está atrás das grades em San Quentin, esperneando como um porco e apontando o dedo para mim, pelo que será punido severamente; o outro está na Unidade de Tratamento de Queimaduras do LAC Medical Center. O que não foi coisa minha, a propósito.
Minhas reflexões foram interrompidas por uma batida na porta.
— Chefe, eu, hm…
Encarei o rosto que olhava ao redor nervosamente: Vittorio, o braço direito do meu pai. Continuei encarando, sabendo que meu olhar vazio e inexpressivo o deixava nervoso.
— Eu… tem alguém querendo te ver, chefe.
Esperei, e ele puxou a gravata.
— Ele não tem horário marcado, chefe.
Minha impaciência aumentou, um lampejo de aborrecimento rapidamente se espalhando.
— É… é o Cobra. Ele disse que quer te ver, chefe.
Era um desdobramento interessante, e um dos mais inesperados.
— Ele está com uma garota que diz ser esposa e… não sei… outro cara. Eles não parecem que vão desistir. Quer que eu os jogue no olho da rua?
Inspirei, irritado. O cérebro do Vittorio só servia para atirar — ele era um risco. A única razão para eu não o aposentar era por conta de sua lealdade inabalável à família.
— Traga-os — disse.
— Tem certeza, chefe? — questionou, em dúvida.
Mostrei os dentes e virei para ele lentamente, vendo suor descer por sua testa e ele engolir em seco, nervoso.
— Está me questionando, Vittorio? — devolvi, minha voz tão fria quanto o mais profundo oceano.
— Não, chefe! Sinto muito!
E correu para fora da sala. Sim, eu definitivamente deveria pensar em planejar sua aposentadoria. Mais cedo ou mais tarde.
Abri uma gaveta da mesa e carreguei minha Beretta 92FS. Era uma bela arma: durável, com recuo curto, capacidade acima da média, e feita de aço inoxidável, que brilhava de maneira estúpida na luz fraca.
Deixei apoiada na perna, pronta para uso, dependendo de como fosse esse encontro. Estava curioso sobre o que Cobra tinha a dizer. Não era sempre que o peixe voltava para a vara.
Vittorio voltou para o meu escritório, os visitantes logo atrás, Lombardo os observando com uma arma na mão.
Cobra mudou nos dois anos desde que o vi. Seu cabelo ficou mais longo e as roupas mais baratas, mas o que mais me surpreendeu foi o brilho em seus olhos — vi esperança. Aquilo por si só era razão o suficiente para eu o matar.
Meu olhar se foi para o homem ao seu lado. Eu não conhecia aquele lá, mas senti a energia inquieta que vibrava debaixo de sua pele, e um brilho de escuridão que ele mantinha guardado. Interessante.
Então me voltei para a mulher. Dos três, ela era a única que não estava nervosa. Muito interessante.
Era alta, com cabelo castanho até a cintura e olhos verdes, bonita naturalmente, sem maquiagem, e segurava a mão de Cobra. Por que ele traria alguém que se importa para um encontro de negócios comigo?
Foi o outro homem quem falou primeiro, dando um passo à frente.
— Meu irmão veio pagar sua dívida.
Meu olhar foi de um para o outro.
— Você deixa outro homem falar por você, Cobra?
Ele olhou para a mulher e lambeu os lábios.
— Somos família, mas não. Estou aqui para falar por mim mesmo.
Esticou a mão para dentro do bolso da camisa e deslizou um pedaço de papel pela mesa até mim.
— São cem mil dólares. Foi o que seu pai colocou na luta que não aceitei, mais os juros. E os outros vinte mil são pela inconveniência.
Estava achando divertido, e olhei para o cheque, sem tocar. Ele realmente pensou que eu queria o seu dinheiro, que poderia pagar por sua liberdade?
— Meu pai não era um homem misericordioso — eu disse, pensativo. — Ele teria pegado seu dinheiro, matado seu amigo, fodido sua mulher e te feito assistir. Então mandaria te castrar e fumaria um cigarro enquanto você sangrava até a morte. — Dei de ombros. — Ou algo do tipo.
De novo, seus olhos desviaram para a mulher, e eu soube que ele daria a vida por ela.
Fiquei surpreso quando foi a mulher quem falou:
— Senhor Gambatto, posso?
Ela se esticou para pegar minha mão e, muito surpreso, eu deixei, dispensando Vittorio, que parecia prestes a arrancar a dela.
— Minha mãe era cigana — contou, em um leve sotaque irlandês, estudando a palma da minha mão atentamente. — Ela veio de uma longa linhagem de mulheres com o dom da percepção extrassensorial.
— Você aprendeu esses truques com sua mãe? — Bufei.
Ela riu levemente.
— Não, não mesmo. Ela era uma mulher maravilhosa, mas não conseguia enxergar nada além do seu amor por meu pai. Não, o dom veio da mãe dela, e da minha tataravó antes dela. Parece pular algumas gerações, mas não sei o motivo.
Ela olhou mais de perto, então estudou minha outra mão, seu toque gentil.
— Seu elemento é o fogo, senhor Gambatto. Você é passional, confiante e trabalha duro. Sua força é o seu carisma e sua habilidade de se comunicar, de falar com as pessoas. Mas aqueles com mãos de fogo podem deixar seus desejos e emoções governarem suas ações. Quando está bravo ou chateado, você pode chamuscar as pessoas mais próximas.
Eu ri, cínico.
— Isso é o melhor que você pode fazer? Me assustar com essa baboseira?
— Odeio quando as pessoas falam assim — a mulher reclamou, me surpreendendo novamente, o que arrancou um sorriso relutante de mim. — Você encontrará o amor verdadeiro muito em breve — continuou, sua voz ficando sonhadora.
Raiva começou a crescer dentro de mim: odeio pessoas que desperdiçam meu tempo.
— Você espera que eu acredite nessa merda?
— Sua mãe acreditava — rebateu, seus olhos arregalados — e ela não teria gostado de você estar xingando.
E por um breve momento, pude ouvir a voz da minha mãe: “Não xingue, Rudi. É tão bruto e sem imaginação. Você é melhor do que isso”.
Hesitei, e a mulher segurou ambas as minhas mãos nas suas.
— Ela disse que você deveria parar de se preocupar com ela. Que ela não sente dor agora.
Arranquei as mãos das suas, fúria aquecendo em minhas veias.
— É fácil me procurar no Google — desdenhei, mas a mulher ainda estava sorrindo gentilmente.
— Ela diz para não se preocupar em se tornar como ele. Você não é o seu pai.
A dor antiga e familiar queimou meu intestino.
— Tem certeza disso?
— Sim, você tem metade do sangue da sua mãe. Ela não quer que fique olhando para a pintura. Disse que você sabe qual é.
Fiquei boquiaberto.
— Como você sabe disso? Com quem você está falando?
— Honestamente? Não sei como eu sei. É um dom. — E sorriu. — Sua mãe te amou muito. E você encontrará o amor também.
— Meu coração é sombrio — cuspi.
A mulher me deu uma risada suave.
— Senhor Gambatto, você sabia que na escuridão dos tons de preto estão todas as cores do mundo?
O tempo parou e eu a encarei em choque, algumas emoções desconhecidas despertando dentro de mim.
Eu poderia tê-los matado. Talvez eu devesse. Em vez disso, eu os deixei partir, o equilíbrio da minha mente perturbado pelas palavras da bruxa.
Possuíam um toque de verdade, e ouvi a voz da minha mãe ecoando em meu cérebro. Eu tinha que ver a pintura.
Passei pelo meu apartamento escuro até parar em frente a ela — o bem que ela mais amava no mundo. Meu pai pagou quarenta milhões de dólares por este quadro de Holman Hunt; não porque minha mãe amou, mas porque foi um investimento.
E hoje em dia, estava coberto por um vidro à prova de balas depois que um dos seus parceiros comerciais decidiu trazer uma metralhadora Uzi para uma festa de Natal.
Inscrita na moldura estava uma frase em latim: in absentia lucis, tenebrae vincunt — “na ausência de luz, a escuridão prevalece”.
Não sei por que minha mãe amava tanto, mas a frase ficou presa em mim: meu pai era a escuridão e minha mãe era a luz, mesmo que ela não tivesse prevalecido. Sem ela, a única luz deixou minha vida.
Por que a mulher de Cobra me disse para não olhar para esta pintura?
Pela segunda vez naquela noite, meus pensamentos foram interrompidos — desta vez, pelo som das sirenes da polícia, enchendo a noite silenciosa com seu barulho. Suspirei, me perguntando quem era — não a polícia local, eu sabia. Talvez os federais — eles adoravam me incomodar.
Cinco minutos depois, Vittorio escoltou uma equipe de agentes até meu apartamento.
— Eles têm um mandado, chefe — disse, preocupado.
— Não tenho nada para esconder — respondi, frio. — Se querem perder tempo, é problema deles.
— É, é sim — retrucou uma mulher, caminhando na minha direção.
Seu cabelo fluía como uma chama na escuridão e ela exibiu o distintivo na minha frente.
— Agente especial Day, e este é um mandato para revistar estas instalações.
Ela ficou surpresa quando peguei seu distintivo, examinando de perto.
— Agente especial Lucia Elaine Day. Prazer em conhecê-la, senhorita Day. Procure. — E devolvi o distintivo.
Ela teve que se inclinar para frente para pegar, seus olhos estreitando e brilhando com a raiva. Sorri, e ela pegou o objeto de volta.
— Lucia… que nome interessante. Sabia que significa “luz”? Seus pais escolheram pelo tema, agente especial Day? — indaguei, minha voz divertida, sorrindo largamente quando ela fez uma careta para mim.
— Quero a chave do seu cofre, Gambatto — respondeu, rosnando.
— Fico sempre feliz em ajudar o FBI, mas não tenho uma chave.
— Me dê a droga da chave ou vou prendê-lo por obstrução agora mesmo!
— É uma combinação — comentei, ficando de pé e dando um passo em direção a ela.
Ela recuou, sua mão indo para a arma no quadril.
Ergui os braços em uma falsa rendição.
— Estou cooperando, agente especial Day, e estou desarmado. Além disso, este carpete é novo. Eu odiaria derramar sangue nele, especialmente o meu.
— Apenas abra a droga do cofre, Gambatto!
— Tsc, tsc. Um vocabulário tão feio saindo de lábios tão bonitos.
Sorri de satisfação e um rubor furioso se espalhou por suas bochechas.
A porta do cofre se abriu e ela vasculhou os maços de notas de cinquenta dólares, franzindo o cenho quando nada incriminador foi encontrado.
— Gambatto, você deveria saber de algo sobre mim — sussurrou. — Eu nunca desisto. Vou ficar na sua cola e, quando você foder com tudo, estarei lá para te derrubar.
Meus olhos deslizaram por suas longas pernas, os seios fartos, parando no arco do cupido em sua boca.
— Estou ansioso para ser derrubado por você, agente especial Day — afirmei, meus lábios se contorcendo para cima.
Ela bradou ordens para suas tropas, saindo do apartamento, a boca em uma linha apertada.
— Mal posso esperar pela próxima vez — chamei por trás dela, rindo ao ouvi-la xingar baixinho.
Fazia muito tempo que eu não ria.
Meu sorriso se desfez no súbito silêncio e olhei de novo para o quadro da minha mãe — in absentia lucis. Franzi o cenho — lucis? Lucia Day?
Ri amargamente — eu era um homem determinado, mas até mesmo eu tinha que admitir que cobiçar uma agente do FBI não me levaria longe. Embora, não seria esse o desafio final?
Ou talvez eu tenha entendido errado — talvez eu fosse o desafio final.
Encarei minhas mãos, mãos que haviam causado morte, meu coração escuro batendo como um toque de recolher.
Na escuridão dos tons de preto estão todas as cores do mundo. Era verdade?
A pintura atraiu meu olhar novamente, meus olhos seguindo os detalhes de cada pincelada, e respirei fundo. O que há nessa pintura, mãe? O que você está tentando me dizer?
E por um breve momento, vi seu rosto refletido no vidro. Ela estava sorrindo.
Uma sensação de paz me preencheu, florescendo de dentro e se espalhando gentilmente pelo meu corpo.
O cheiro de seu perfume continuou no ar bem depois que a visão se desfez.
FIM.